ÂMAGO

 Não têm sido muitas as vezes que jantámos fora nos últimos tempos, pelo que a escolha do restaurante para uma data especial envolvia infinitas possibilidades. O nosso jantar acabou até por ser antecipado, dadas as restrições impostas no fim de semana que inviabilizaram que a celebração acontecesse na data certa.
O eleito foi o Âmago. Palavra esdrúxula e trissilábica que define o essencial, o profundo, a espinha dorsal, e que encaixa no que retiramos desta experiência. Comer é essencial, mas no Âmago encontrámos dimensões várias que nos tocam no coração, e não são tão comuns assim num restaurante. Para começar, toda a atenção do duo que dá a cara pelo Âmago - André e Marta - estava em nós, já que a sexta-feira era fria, chuvosa, antecipava um longo fim de semana de confinamento e muita gente tem abdicado de refeições fora. No entanto, o que nos espantou foi tudo o humanismo dos anfitriões, que tiveram a humildade e a amabilidade para descerem ao nível dos comuns mortais para uma conversa que parecia de amigos. À chegada ao restaurante, a Marta viu os menus e perguntou se não valia a pena ir para o mais completo: como calculava não era possível porque a refeição foi pensada à medida para nós, e o aviso teria de ter surgido com mais tempo. Portanto, em nada belisca a experiência até porque no cômputo geral a comida foi mais que suficiente.



Do mercado que habitualmente frequentam, resgataram um Lírio de mares frios que usaram para algumas das suas criações do dia: entre elas uma colher de Lírio super temperado e marinado que se revelou um punch de puro sabor e onde a cerimónia foi tanta que não houve tempo para uma fotografia. Aliás, foi o primeiro esgar de prazer após a primeira peça, composta por uma variedade de algas à bulhão pato, mais neutra e que preparou o paladar para o que aí vinha.



Depois de uns minutos a observar atentamente o waffle que decorava a bancada dos Chefs, a minha curiosidade foi saciada com um dos melhores da noite: um waffle com cachaço de porco marinado, com kimchi e cozinhado 24h, complementado com os sucos da marinada. Todo este "topping" sobre o Waffle é a ponte para a anterior proposta de André e Marta, parte do seu plano de contingência para enfrentar a crise provocada pela pandemia, a qual atrasou a abertura do Âmago, inicialmente planeado para Março. Era o The Sandwich Project, onde as suas sandes arrojadas e repletas de rock n'roll almejavam elevar a experiência de uma sandes a outro patamar. Eu, que não pude experimentar estas sandes, fiquei com muita vontade de trincar uma Pork Floyd, porque se o sabor se aproxima deste waffle, então bem que poderia ser a sandes da minha vida.



Já parece muito, mas acreditem que foi só a introdução. O primeiro verdadeiro momento, tão português e mediterrânico, foi um pão feito pela dupla, que à semelhança de muitos de nós, começou a aprender e a aprimorar a arte de fazer pão durante a quarentena. Dizem eles que, após destruir umas quantas massas-mãe, conseguiram uma fórmula da qual se orgulham. Nos entendemos, tanto que pedimos umas fatias extra para que não se desperdiçasse o azeite Metáfora nem a manteiga fumada, que completavam este belo trio com cores inacreditáveis.



De seguida, aterrou na mesa do Âmago o que restava do Lírio, curado de todas as suas mazelas e pronto para partilhar o palco com pêra e cogumelos, mergulhados em Dashi, um rico caldo japonês. Um prato reconfortante onde o peixe conserva todo o seu sabor, não ficando em nada a dever ao que sentimos num bom restaurante de sushi.



Do peixe para a carne, demos com o ponto alto da noite, e um dos pontos altos deste 2020 gastronómico, porque este Novilho cozinhado durante 72h com puré de bolbo de aipo e ameixas braseadas com miso é caso sério. São as 3 sensações que mais aprecio, unidas num prato só:
1) tenro - o novilho desfaz-se na boca cheio de sabor; 2) cremoso - puré de aipo suave e com a textura perfeita; 3) crocante - conferido através de telha de arroz com cinza de alho francês. É como se todos os trunfos fossem utilizados nesta jogada, excepto que a dupla tem muitos mais. Para embelezar ainda mais a festa, o molho de carne com apontamentos de gengibre decidiu comparecer, fazendo este prato especial saber a Natal. É curioso porque os sabores que associamos à época natalícia são mais doces, e neste caso foi o prato principal que trouxe a quadra à nossa boca.



Para ligar esta delicia à sobremesa, temos uma criação minimalista: côco e alfazema regadas com xarope de açúcar mascavado. O sabor predominante era o da alfazema, e o mais curioso é que se trata de algo que só conhecia enquanto cheiro. Portanto, um novo sabor para as papilas degustativas.



O tão aguardado doce que pauta os finais das refeições completas chegou em grande estilo. Uma espuma de lima cobre um segredo bem escondido e a mistura destes sabores é bastante inusitada: maracujá e doce de leite. Nunca havia conjugado doce de leite com sabores mais fortes em acidez, e daí retiro que os dois sabores distintos continuam lá, puros e misturados, não criando um novo sabor. Não obstante, no contraste de sensações, o doce de leite preenche perfeitamente o meu imaginário de doce e não restou nada.



Por fim, chegou-nos um brinde com toque de requinte, qual cereja no topo do bolo. Uma goma ácida de jasmim que se quer comida com uma dentada só, para depois atacar o suspiro de alface do mar. Arrisco-me a dizer que foi o melhor suspiro (de açúcar, não é?) da minha vida. Fresco, quase que sabe a mar, e não soube propriamente a açúcar.



Não foi preciso a dupla sacar do seu carabineiro para nos satisfazer e surpreender, mas para a próxima não nos importamos que esse trunfo chegue à mesa. A conversa foi tão boa dado que somos 4 amantes da boa comida e ávidos exploradores de novos restaurantes, que o tempo passou lindamente e sem pressas. Haverá uma próxima, e quiçá com os prometidos 8 momentos. Desejamos toda a sorte ao Âmago, depois deste difícil parto e da desafiante conjuntura que se segue. Mas se a qualidade imperar, irá triunfar.

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